Desde
que o naturalista inglês Charles Darwin propôs, em 1860, a sua
famosa teoria da selecção natural, não temos mais dúvidas de que
a espécie humana moderna, o Homo
sapiens sapiens,
evoluiu a partir de outras espécies, num contínuo que remete para
um primata que foi, algum dia no passado distante, o "elo
perdido" entre os primatas antropóides ("parecidos com o
homem"), e o primeiro dos hominídeos ("género dos
homens"). Ao longo do século XX, inúmeras descobertas
paleoantropológicas demonstraram a existência de um grande número
de espécies de hominídeos, como o Australopithecus,
todas elas surgidas em África, num período que cobre os últimos
5,5 milhões de anos. O crescimento gradativo da capacidade craniana
e do volume do cérebro, o aparecimento da postura erecta permanente, com a libertação da mão, o surgimento do uso de ferramentas e da cultura simbólica, o domínio
de tecnologias como o fogo e a construção de abrigos, a caça,
etc., tudo isso é bastante evidente a partir do exame do registo
arqueológico dos hominídeos, até ao surgimento, 2 milhões de anos
atrás, do Homo habilis ("homem
habilidoso") e do Homo
erectus ("homem
erecto"),
as primeiras espécies que talvez possamos considerar "humanas",
no seu sentido moderno, pois desenvolveram a linguagem falada
complexa, a construção de ferramentas, as vestimentas, o fogo, a
cocção dos alimentos, etc. A capacidade craniana aumentou de 500
cm3 para
1200 cm3 entre
os primeiros Homo habilis e
o Homo erectus,
em pouco mais de um milhão de anos, embora a sua aparência facial
continuasse a ser a de um antropóide. Foi, também, a primeira
espécie humana a ter mobilidade em escala planetária, tendo-se
espalhado pelo Médio Oriente, China e Java. Os seus sucessores,
o Homosapiens neandertalensis,
surgido há 300 mil anos atrás, e o Homosapiens sapiens,
há 120 mil anos, aumentaram a capacidade craniana para o valor
actual (1350 cm3),
invadiram todos os rincões da Terra, mesmo os mais distantes e
inóspitos, desenvolveram as representações simbólicas, como a
arte pictórica, a escultura e a música, os adornos corporais, as
armas de guerra, a medicina, a domesticação de animais, a
agricultura, e as crenças espirituais, como as religiões, o culto
ao invisível, os ritos funerários e as superstições mágicas.
Todas essas características e "invenções" eram
unicamente culturais e transmissíveis entre seres humanos através
do ensino, e são únicas entre as espécies animais, inclusive entre
os outros primatas.
Não
é muito difícil chegar à conclusão de que somos realmente muito
parecidos biologicamente com os nossos "primos", os grandes
primatas antropóides. Nos tempos de Darwin, um dos eventos que mais
influenciou a aceitação da sua teoria foi a exposição, pela
primeira vez, de gorilas vivos no Jardim Zoológico de Londres. As
muitas coisas que temos em comum com eles abalou as convicções
profundas dos vitorianos da época, que defendiam que o ser humano
tinha sido criado por Deus à sua imagem, como uma espécie
totalmente à parte das demais. Por exemplo, herdámos dos primatas e
antropóides algumas características fundamentais tais como a visão
colorida, os dois olhos voltados para a frente, a face plana, o
grande desenvolvimento do neocórtex, e a alta destreza manual, esta
última incomparável a de qualquer outro mamífero.
Comportamentalmente, todos os antropóides são capazes de manipular símbolos, demonstram uma enorme capacidade de adaptação ao ambiente
através da aprendizagem, são capazes de usar ferramentas para uma
variedade de tarefas, utilizam muito os tele-sentidos (visão e
audição) para interagir com o ambiente, possuem transmissão
cultural do conhecimento, têm uma bem estruturada vida social
baseada na tribo, o comportamento sexual e reprodutivo, e complexas
formas de intercomunicação intra-específica. Geneticamente também
somos muito parecidos: a biologia molecular descobriu, por exemplo,
que 98% do genoma do chimpanzé é igual ao nosso. Em suma,
somos "macacos sem pêlos", como dizia o título de um
livro que fez grande sucesso na década dos 70s, "The
Naked Ape",
do biólogo inglês Desmond Morris. Comparativamente a outros
mamíferos superiores, somos extremamente desprotegidos. Não
possuímos garras nem presas proeminentes, não temos pele grossa,
temos poucos pêlos. Temos limitações em correr, saltar,
nadar.
Então,
como esse animal singularmente frágil conseguiu espalhar-se por todo
o planeta, sobreviver nas condições mais extremas e ser capaz de
dominar todos os tipos de ambiente, até mesmo o espaço sideral? O
que nos distingue das outras criaturas vivas? O que nos faz
unicamente humanos? Esta tem sido uma indagação angustiada desde
que Darwin nos "tirou" o estatuto de espécie dominante do
universo...
De
facto, o homem possui diversos atributos que o distinguem das outras
espécies. A postura erecta e andar com os membros inferiores
permitiu aos membros superiores ficarem livres para outras funções;
a mão preênsil atua como uma verdadeira ferramenta e permite o
desenvolvimento da tecnologia; o desenvolvimento da fala e da
linguagem permitiu formas de comunicação mais adaptáveis; o
alargamento do cérebro relativo ao tamanho do corpo; o
desenvolvimento das interações sociais e culturais: infância e
juventude prolongada, desta forma oferecendo a base para a complexa
organização social, bem como a divisão de tarefas na sociedade,
controlo sobre o sexo e a agressão. Finalmente, os seres humanos
expressam-se como indivíduos. As características que permitem isto
incluem a emoção, a motivação, a expressão artística e
espiritual.
Todas
essas características, direta ou indiretamente relacionam-se com
o desenvolvimento do nosso cérebro. O nosso carácter único repousa
no nosso cérebro. O enorme cérebro desenvolvido principalmente no
córtex cerebral dotou-nos de propriedades que não existem, ou
existem de forma primitiva noutros antropoides É no córtex que
possuímos os mais altos níveis de análise sintética. É lá que a
nossa visão do mundo é analisada, planeada e programada para
executarmos uma ação.
O grande
desenvolvimento do cérebro, por sua vez, levou ao nascimento daquilo
que o cognitivista americano Steven Pinker denominou de "uma
espécie simbólica". Desenvolvemos, através de símbolos
verbais, a representação de objetos da realidade e conceitos abstratos. Além da
capacidade verbal do cérebro, desenvolvemos a capacidade de emitir
sons de alta precisão que manipulados por este cérebro simbólico
possibilitou, pela primeira vez na escala animal, a evolução extra genética: a evolução cultural, ou seja, a transmissão de
símbolos de um ser humano para outro. Com isso desenvolveu-se o
conhecimento, que é uma propriedade única do ser humano, e que se
relaciona com o pensamento e a consciência (que certamente podem
existir em outros primatas não humanos, mas que diferem num grau
muito amplo em relação à espécie humana).
A
capacidade simbólica do cérebro gerou coisas notáveis como uma
habilidade geneticamente determinada de aprender qualquer língua ou
inventar uma nova, por exemplo, o esperanto e as linguagens de
computador. Também gerou a capacidade especial de inventar melodias,
sons harmónicos, dança, elementos simbólicos que usam
provavelmente as nossas estruturas cerebrais responsáveis pela fala,
articulação dos movimentos e pela integração de tudo isso.
Entre as
nossas características culturais únicas, a arte é talvez a mais
nobre invenção humana. Imaginem, por exemplo, a
necessidade de recrutamento de biliões de neurónicos, milhares de
músculos, uma imensa capacidade sensorial, visual e auditiva, a
espantosa capacidade de memória envolvida para saber de cor e
executar um concerto para tocar uma serenata de Chopin ao piano.
São biliões e biliões de neurónios, treinados ao longo de anos de
prática, espalhados por todas as regiões do cérebro, e trabalhando
em harmonia para produzir um resultado de uma complexidade
inimaginável.
Quando o
homem se tornou um animal tribal, desde que começou a andar erecto,
mais de 4 milhões de anos atrás, ele passou a ser um caçador e
guerreiro tribal, onde a cooperação social era um fator importante
de sobrevivência. Todos os instintos sociais humanos se
desenvolveram bem antes da esfera intelectual: instinto maternal,
cooperação, curiosidade, criatividade, compaixão, altruísmo,
competitividade, etc., são muito antigos, e podem ser vistos nos antropoides também. Mas, o ser humano novamente se distingue dos
outros primatas através de uma característica mental muito forte:
gradativamente desenvolvemos o auto-controlo, ou seja, a capacidade
de modificarmos qualquer comportamento social, mesmo que instintivo,
de maneira a torná-lo mais útil para a nossa sobrevivência. Quanto
mais disciplinados, e capazes de auto-controlo e de planeamento, quanto mais a nossa mente racional for capaz de dominar a emocional e
instintiva, mais humanos seremos.
Portanto,
a espécie humana também tem o singular dom de dominar o cérebro
emocional por meio do cérebro racional. Isto, adicionado à
capacidade de planear, gerou um animal capaz de vencer através da
inteligência todas as suas restrições e debilidades físicas,
tomando-se a espécie dominante do planeta, destruindo e devassando
aquelas que se lhe opõem, ou usando para si aquelas espécies que
são úteis para o seu próprio benefício como as bestas de carga,
as cobaias de laboratório, os animais produzidos para alimento, etc.
O que
nos aguarda no futuro? Como será a espécie humana no ambiente que
aprendemos a moldar e reconstruir?
Ainda é
cedo para respondermos. Precisamos, sem dúvida, de nos entendermos
melhor. Existem motivos para duvidar que nos próximos 50 anos
sejamos capazes de deslindar o funcionamento das funções
intelectuais superiores, devido à enorme complexidade do sistema
nervoso, para a qual ainda não existem métodos adequados de
estudo. Muitos filósofos colocam inclusive a dúvida de
se um cérebro é capaz de entender-se a si mesmo algum dia. Talvez a
complexidade estrutural e funcional do nosso cérebro seja tão
grande, que nunca possamos chegar a entendê-la: seria necessário
ter um cérebro mais desenvolvido para isso.
CarlSagan, Os Dragões
do Éden.
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ANÁLISE/EXPLORAÇÃO DO TEXTO
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ANÁLISE/EXPLORAÇÃO DO TEXTO
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Mapa conceptual interpretativo do documentário
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