quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Diz que é uma espécie de democracia

por Pedro Jorge Pereira
Activista e formador eco-social
artigo publicado parcialmente no Barómetro Social
O actual primeiro-ministro do estado português estabeleceu uma série de medidas relativas ao orçamento de estado para 2012 que representam um tremendo retrocesso relativamente a algumas das principais conquistas do povo português num contexto pós 25 de Abril. Direitos sagrados e consagrados como o do subsídio de férias e de natal vêm-se dessa forma subitamente, num abrir e fechar de olhos (diria mais num fechar de olhos) “surripiados” em nome de um hipotético e quase profético combate ao “défice” e à “crise”.
Uma prática constante de diversos regimes (e em especial daqueles particularmente autocráticos) tem sido o de encontrar um “inimigo” ou ameaça externa, por vezes interna também, capaz de legitimar e justificar toda uma panóplia de medidas e acções que em circunstâncias normais seriam … aquilo que são: um violento atentado aos direitos e liberdades dos cidadãos. Direitos esses, tantas e tantas vezes, conquistados através de lutas de décadas com muito sangue, suor e lágrimas de muitos combatentes pela liberdade e direitos dos cidadãos.
Numa era de obstinado neo-liberalismo em que a economia de mercado impera sobre tudo e sobre todos (ou pelo menos é essa a ideologia dominante a nível mundial) o terrível inimigo essencialmente “externo” (já que nenhum governo assume grande responsabilidade nos elementos causadores e também no agravamento de tão tremendo fenómeno) é a crise económica global. Muito falado é também o obsessivo “combate ao défice” como objectivo primordial na estratégia de enfrentamento à referida crise.
Creio que em relação à crise existem primordialmente aspectos tangíveis e reais inerentes à mesma e aspectos, diria, especulativos.
Ou seja, parece-me que um modelo económico que surgiu e se desenvolveu baseado numa tremenda torrente de especulações financeiras globais e baseado numa economia cada vez mais de base especulativa (e de criação virtual de crédito) do que real não poderia senão caminhar a passos largos para a sua própria implosão. Um modelo económico baseado na produção em massa de bens de consumo supérfluos e descartáveis, a partir de matérias-primas cada vez mais escassas, e com um violento impacto ambiental, não poderia senão manifestar cada vez mais o seu carácter limitado e finito (ao contrário do que preconizam uma grande parte das teorias evidentemente mirabolantes que o justificam).
Parece-me ainda que um modelo económico e ideológico que preconiza a “mercantilização” de todos os bens e serviços, nomeadamente os essenciais à vida, como paradigma máximo de crescimento, não pode senão acabar por tornar evidente, mais tarde ou mais cedo, o carácter absurdo da sua suposta legitimidade.
Ainda assim, e apesar de tudo isso, é ainda esse modelo que se vai propagando como um vírus da mais feroz virulência pelo mundo fora e também em Portugal. Mais ainda: não são muitos os que ousam colocá-lo de forma explícita e directa em causa. Ou seja, indiciá-lo como a principal razão para a ocorrência de muitos dos fenómenos que ele próprio diz pretender enfrentar, nomadamente o “défice”, a “crise”,etc.
Neste sistema tudo e todos (o próprio ser humano) é reduzido ao seu valor de mercadoria, valor esse que quando reduzido ou insignificante pode significar a assumpção dessa mercadoria ou bem como “refugo” ou matéria dispensável. E numa era do “descartável” nem o próprio valor do “trabalho” (como ferramenta de inserção, coesão e valorização individual no colectivo) se encontra a salvo de se tornar “descartável” através de uma cada vez mais implacável precariedade eufomisticamente designada de “flexibilização”.
Mas como vinha dizendo, há de facto diversos aspectos tangíveis inerentes ao “natural” esgotamento deste sistema económico/ideologia. Há também, no entanto, muitos aspectos que indiciam a existência de uma importante base especulativa.
Tanto ao nível dos aspectos tangíveis como dos intangíveis há um aspecto inerente a ambos que se reveste de uma importância primordial:
Raramente são “apontadas” as verdadeiras razões do ponto a que a situação chegou e a permanente injecção de capitais no sistema bancário parasitário, à custa de uma cada vez maior depredação dos cada vez mais parcos recursos económicos da maior parte da população, sobretudo daquela que não faz parte da minoria elitista com um enorme poder económico (que se repercute ainda em influência a outros variados níveis), somente tem vindo a atenuar ou disfarçar a verdadeira dimensão da dita crise. Ou seja, a gravidade de todos os devaneios especulativos da banca e da bolsa só não é mais evidente porque o cidadão comum, que aspira somente a viver a sua vida tendo a possibilidade de satisfazer as suas necessidades mais elementares, tem vindo a pagar do seu bolso, do seu esforço, o encobrimento da tremenda vulnerabilidade e disfuncionalidade inerente ao sistema monetário internacional.
Por detrás de tudo isto convém não esquecer um detalhe importante: Por detrás de toda uma máquina, de todo um sistema, estão alguns indivíduos que têm de facto um enorme poder aos mais variados níveis. Hoje em dia as principais corporações multinacionais têm, várias vezes, maior poder económico do que vários países juntos. Por outro lado essas multinacionais são detidas pelos seus accionistas. Dito de outra forma: Um conjunto relativamente restrito de indivíduos tem maior capacidade de influência nas decisões que condicionam a vida de milhões de habitantes em todo o planeta (pois o seu raio de acção é cada vez mais “global”) do que essa enorme maioria. Não tanto através da politica (mas também), não tanto através da força militar (mas também), mas sobretudo através dos mercados. E a questão é que quase todas as esferas de decisão e relacionamento são transformadas em peças do enorme tabuleiro de xadrez mercantil.
De certa forma estamos perante uma situação que se pode classificar de neo-feudalismo. Temos já não uma realidade em que os agricultores e artesões tinham a obrigatoriedade de pagar o tributo ao senhor feudal de determinada região (e este posteriormente à coroa) mas uma realidade em que de cada vez que “compramos” algo estamos a pagar o nosso tributo aos senhores que detêm a posse do conjunto cada vez mais restrito de multinacionais que controlam e detêm a produção de uma grande parte dos bens e serviços que utilizamos e necessitamos.
Esses bens e serviços, é importante dizer, são praticamente … todos. Por outro lado é ainda mais importante salientar que os governos tendem muitas vezes (talvez na maioria das vezes) a defender e representar muito mais os interesses dessas corporações, logo desses novos senhores feudais, do que do comum cidadão. No mundo neo-liberal as decisões têm muito mais por propósito garantir “boas oportunidades de negócio e lucro” do que realmente contribuir para o bem-estar da generalidade das pessoas. Na realidade os dois objectivos são em larga medida antagónicos, e o primeiro tende a ser muito mais preponderante num contexto em que um pouquinho mais para esquerda, ou um pouquinho mais para a direita, os principais governos e partidos nunca deixam de obedecer a uma lógica e ideologia obstinadamente neo-liberal. Uma ideologia que, de resto, tem essa propriedade única de parecer uma não-ideologia. Tem essa propriedade de parecer uma “inevitabilidade histórica natural” e não fruto de uma agenda e de um plano estrategicamente traçado pelos principais arautos do neo-liberalismo que começaram a adquirir cada vez maior poder sobretudo na década de 80 com os regimes fundamentalistas do neo-liberalismo de Reagen e Thatcher. Esta última também conhecida pela “dama de ferro” e que fez de facto justiça ao seu cognome.
Por outro lado é uma ideologia que nunca o assume ser, nem quando as medidas e decisões são de carácter completamente neo-liberal. Mas são sempre justificadas em função de uma série de conceitos mais ou menos vagos como o tal propalado “combate ao défice”, “reestruturação económica”, etc. Enfim, nada de novo quando estamos tão habituados a ver inúmeras intervenções de destruição do património histórico ou natural serem designadas de “requalificação” e “valorização paisagística”. Também não é novidade a forma quase inacreditável como essa táctica de recurso a “lugares comuns mais ou menos vagos” continua a funcionar de forma tão eficaz … desde logo ao nível dos próprios órgãos de comunicação social tornados, na maior parte das vezes, mais em órgãos de propaganda da ideologia neo-liberal do que propriamente em jornalismo independente, crítico e impulsionador de uma verdadeira reflexão.
Em Portugal é também um “lugar comum” designar o direito ao voto como uma das principais conquistas da revolução de 25 de Abril.
Numa perspectiva que pode ser assumidamente polémica (felizmente, pois estamos urgentemente a necessitar de polémicas com coisas e questões que têm realmente a utilidade de o ser), tendo a acreditar que, no actual contexto, o direito ao voto, muitas vezes, mais não funciona como uma forma de legitimar um sistema que à partida se encontra em larga medida … podre. Não existe uma forma mais “simpática” de o dizer. Podre. Em muitos aspectos podre e profundamente “viciado”.
O voto é de facto um direito importante, mas tão mais importante quanto maior for a profundidade das ideias políticas, a profundidade dos programas políticos. Tão mais importante quanto for o nível educacional (que muitas vezes não passa propriamente pelo nível académico) e, sobretudo, a capacidade de juízo crítico por parte dos cidadãos.
Nessa medida parece-me evidente que a actual democracia que existe em Portugal é em muitos aspectos bastante limitada. Quantos dos eleitores votantes leram realmente o programa eleitoral do partido que estão a eleger? Quantos eleitores votam em virtude de uma reflexão crítica independente mais do que de uma fidelidade partidário-clubística, de um condicionamento emocional gerado pelas máquinas de propaganda eleitoral, de uma agradecimento pela régua, pela caneta ou pelo concerto de música pimba oferecido pelo partido e pelo candidato? (quanto mais “populista” melhor). Quantas campanhas discutem realmente ideias, iniciativas, ideais? O cerne da mensagem dos principais partidos, nomeadamente dos com maior representação partidária, é no essencial vaga, vazia e “simplex”. Conceitos como desenvolvimento, crescimento, educação, tecnologia proliferam de uma forma alucinante. É esta Democracia o melhor a que podemos aspirar como ideal pós 25 de Abril?
O maior logro, creio, é assumirmos que temos todos os motivos e mais alguns para nos sentirmos satisfeitos com as “conquistas de Abril”. Conquistamos de facto coisas muito importantes. Desde logo o facto de ter terminado um regime profundamente obscurantista e autocrático que mergulhou Portugal em décadas de estagnação. O maior logro creio, contudo, é esquecermo-nos que a Democracia é um processo em permanente construção, reinvenção e, sobretudo, observação. Se conquistamos muitas coisas é importante não esquecer que outras tantas ficaram por realizar, sonhar, alcançar. Se calhar muitas mais do que as que foram alcançadas. Tantas delas cujo vislumbre se pressentiu em Abril, mas que depois acabaram por nunca chegar a “ser”, sobretudo com o retorno a muitas das situações que a revolução nunca chegou a verdadeiramente a revolucionar (por exemplo a distribuição do poder económico que com relativa rapidez voltou à posse das grandes “oligarquias” e famílias).
Por todos esses motivos parece-me que uma das maiores limitações da actual democracia é o cidadão concentrar ou focalizar a sua capacidade de intervenção, acção e reflexão no mero acto eleitoral que face a um contexto de plena tecnocracia partidária em muitos aspectos não muda propriamente o cerne de muitas questões.
Ou seja, uma das principais limitações da actual Democracia prende-se, na minha opinião, com essa tremenda susceptibilidade de conduzir o cidadão a um papel de acentuada apatia e resignação. Ao papel de mero observador mais ou menos passivo (exceptuando nesse momento em que quase por favor a tecnocracia partidária concede o direito ao cidadão de eleger aqueles que irão tomar o cerne das decisões relativas à sua vida … por eles). Na maior parte dos casos quando existe alguma “revolta” ou não resignação dos cidadãos ela tende a manifestar de forma muito inconsequente, inconsciente e, vezes e vezes sem conta, na alteração, ou não alteração, de determinado sentido de voto que, no fundo, não muda em quase nada a direcção a um panorama social, político e económico cada vez mais, e obsessivamente, neo-liberal. O dito centralismo democrático em Portugal (e na quase totalidade dos países da Europa) parece-me ser a maior evidência disso mesmo.
Por outro lado, e aqui reside outros dos aspectos fundamentais da questão, a realidade é que a eventual mudança de forças e orientações a nível político (quando elas acontecem, e as que têm vindo a acontecer têm sido manifestamente “para pior”) não tem vindo a produzir significativas modificações no plano provavelmente mais determinante aos mais variados níveis: o plano económico.
Os principais partidos políticos, pelo menos aqueles que têm vindo a constituir a diferentes legislaturas em período dito democrático, têm vindo a manifestar uma forte subjugação às principais forças e entidades económicas que se movem, por assim dizer, na sombra. Mas que vezes e vezes sem conta acabam por ser mais influentes e decisivas do que eles próprios. Na realidade, em larga medida não existe qualquer separação entre ambos. Os partidos, e a “elite” que possui maior poder no seu interior, são na verdade o próprio poder económico dominante. São os novos senhores feudais, ou lacaios dos mesmos, que têm vindo a transformar todo o nosso tecido económico e social (nacional e global) num verdadeiro jogo de monopólio bolsista e bancário.
Esse poder é alicerçado num enorme apego a esse mesmo poder, assim como numa tremenda falta de ética e acima de tudo num enorme pressuposto de egoísmo e meritocracia. Esse poder institui a opulência e acumulação exponencial de fortuna de uns poucos em detrimento do mais elementar bem-estar de muitos (a esmagadora maioria da população). Esse poder semeia a desigualdade, a injustiça, a exclusão e a pobreza. E fá-lo com todo o descaramento e legitimidade alicerçada na aparência de normalidade que institui. É legitimo roubar aos pobres para dar ainda mais aos ricos. É legitimo tornar os bens e serviços públicos em “mercadorias” a vender em leilão aos grandes grupos económicos dos senhores feudais dos quais são o mais fiel “xerife”.
São indivíduos profundamente insensíveis e obstinados nos seus propósitos de ascensão na hierarquia político-económica aqueles que dirigem os destinos de milhões de seres humanos no nosso país e também no globo.
Como é que podemos permitir que a democracia se torne nesta teia de poderes, jogos de interesse e, acima de tudo, mecanismo de perpetuação de poder destes novos, e também velhos, senhores feudais modernos?
O Estado somos todos nós? O Estado é cada vez menos todos nós e cada vez mais o todos eles. É um Estado cada vez menos social e cada vez mais um Estado que trabalha e existe para desregulamentar e implodir tudo aquilo que é serviço e interesse público. É um Estado planeado para o ser só na medida em que possa ser útil ao funcionamento da grande máquina especulativa e corporativa.
O Estado tornou-se numa máquina parasitária, pesada e de funcionamento trôpego? Sim, em larga medida tornou-se, sobretudo na medida em que se tornou num Estado à medida do aparelho burocrata do poder dominante e num Estado cada vez menos do e para os cidadãos.
Por outro lado a decisão de tornar o Estado no que se tem vindo a tornar tem vindo a ser isso mesmo: uma decisão. Uma decisão inserida numa agenda e política de neo-liberalização que não esconde nem por instantes se desvia um milímetro que seja da sua genética e “instinto natural”.
Foi esta a democracia porque tanto aspiramos? Uma democracia em que nos resta escolher entre um Estado burocrata, tecnocrático e tremendamente sorvedor de recursos ou uma desregulamentação feroz do mercado e hipoteca definitiva da nossa economia, sociedade e planeta aos interesses dos grandes grupos financeiros globais e nacionais?
Foi esta democracia porque tanto aspiramos? Em que uma nova elite global e nacional, em nome do nosso bem-estar, ousa expropriar, pilhar e destruir numa aura de aparente ordem e sentido de “causa maior”?
Foi esta democracia porque tanto aspiramos? Em que nos tornamos num rebanho dócil e crentes fieis desta nova religião global? Aleluia Banco Mundial, Aleluia Organização Mundial de Comércio, Aleluia Nato.
Diariamente dezenas de decisões - às vezes muito mais determinantes e influentes ao nível daquilo que é a realidade de milhões de seres no planeta Terra do que as dos próprios governos - são tomadas nas salas de reuniões dessas novas instituições supra-mundiais cujos funcionários, a propósito, não são alvo de qualquer escrutínio ou sufrágio por parte do comum cidadão.
O século XX foi pródigo em progressos, conquistas e emancipação dos grupos e classes sociais até aí de uma forma geral quase sempre oprimidas e descriminadas. Um progresso que não surgiu do nada mas que foi o corolário de uma grande luta pela emancipação social e económica dos indivíduos. Pela consagração dos direitos humanos.
Em poucas décadas de neo-liberalismo, em muitos aspectos, temos vindo a hipotecar e vender, a preço de saldo, muitas dessas conquistas. Em nome, precisamente, do nosso bem-estar. Estranho paradoxo este … termos de abdicar de tudo que é essencial, termos de fazer sacrifícios para um dia mais tarde, quem sabe, podemos recuperar uma parte de tudo o aquilo que agora temos de aprender a viver sem …
Esta espécie de aceitação subliminar, esta cultura de aceitação sem questionar ou, menos ainda, obstar seja de que forma for … é exactamente aquela que predominou no país durante as longas décadas de ditadura fascista … e ela é precisamente a chave para a manutenção e disseminação desta democracia tecnocrática e fortemente partidarizada.
Enquanto acharmos que “eles é que sabem”, “eles é que decidem” e, pior ainda, naquilo que é maior procissão de fé à nova religião, acharmos que eles estão lá principalmente para zelar pelo nosso bem e interesses (e que bem Salazar explorou esse papel do “Pai da pátria”) nunca seremos capazes de desenvolver e pensar novas formas de participação e decisão cívica, novos modelos de funcionamento democrático em que os cidadãos adquiram um papel cada vez mais activo e cada vez menos passivo e submisso às lógicas e esquemas partidários. Esquemas esses, e nunca é demais repetir, submetidos sobretudo à lógica de funcionamento dos jogos de influência e decisão dos principais centros do poder económico neo-liberal. Centros esses que se encontram em larga medida camuflados e envolvidos numa aura de secretismo, no mínimo, muito pouco democrático. Teoria da conspiração? É talvez mais fácil e confortável acreditar que a democracia funciona de forma plena, que os homens da política e da economia pretendem de facto o nosso bem … que todo o sistema funciona de forma ética, transparente e em que os cidadãos têm de facto um enorme poder de participar nesta vida democrática. A verdade é que com uma relativa excepção dos países escandinavos, e muito em particular do exemplo da Islândia que tem sido sistematicamente ignorado pelos principais meios de comunicação social, creio que acreditar em tudo isso não é muito diferente de acreditar na fidelidade conjugal de Sílvio Berlusconi.
O que é mais importante, a nossa vida ou o lucro deles? A possibilidade dos seres terem acesso às mais elementares condições de bem-estar, nomeadamente saúde, educação e alimentação, ou a prerrogativa de uma pequena elite acumular cada vez maiores fortunas e viver na mais obscena opulência? A resposta é óbvia. Mas então porque é que vivemos e permitimos a existência de um sistema que tem vindo a agravar e a produzir cada vez mais precisamente o oposto?
Não são meros acasos circunstanciais mas políticas, planos e estratégias muito bem delineadas e alvo de meticulosas elaborações em gabinetes nos principais centros do poder neo-liberal.
Nós gostamos de acreditar que só querem o nosso bem, que os seus propósitos são nobres e solidários. Mas no fundo sabemos que vezes e vezes sem conta não é assim, bem pelo contrário. Provavelmente não é assim na grande maioria das situações.
Um indivíduo, ou, pior ainda, um conjunto de indivíduos sedentos de poder, ou viciados no seu poder, são indivíduos que por norma não olham a meios para atingir os seus fins. E essa é em larga medida uma realidade que determina aquilo que é o nosso dia-a-dia. Essa é uma premissa que quase tacitamente aceitamos como natural nesta forma de democracia predominante.
É um princípio, no fundo, extremamente doentio, mas ao qual nos habituamos como quem tem que viver com uma doença incurável. Mas a verdade é que não tem.
Todo este sistema precisa de um profundo tratamento de choque. Todo este sistema precisa de ser denunciado e exposto antes que já nada mais haja a salvar.
Todo este sistema, e muito em particular os interesses a quem ele provem, precisam de conhecer a capacidade dos indivíduos e cidadãos em dizer “já basta” e a capacidade destes reclamarem o direito a decidir e escolher aquilo que é de facto o melhor para a sua vida. E é bem melhor terem um acesso realmente democrático (e não cada vez mais elitista) a boas condições de trabalho, de educação, de ambiente, de saúde do que a manterem em funcionamento um sistema monetário parasitário e cada vez mais em estado comatoso. Vivemos agrilhotinados por esse “zombie” de que temos que nos livrar de uma vez por todas.
É tempo de partir para novas formas de luta (de preferência não as já as da “praxe”, mesmo com todo o respeito que merecem, do comício e das manifestações com “slogans” gastos) e de reinvenção democrática. É talvez até tempo de desobedecer de forma pacífica. Como dizia Gandhi, “é um dever moral dos indivíduos desobedecerem a leis que são injustas”, como as desta democracia são cada vez mais. Leis fiscais, leis laborais e leis legislativas.
Muito mais fica por dizer mas acima de tudo urge o tempo da acção, reinvenção e repensarmos criativamente os modelos de organização social, económica e política que realmente desejamos para a nossa vida e para a nossa sociedade.
Muito mais fica por dizer, por escrever mas a verdadeira democracia tem de ser sempre, sobretudo, um livro em aberto, à espera de ser escrito por todos os cidadãos com capacidade de pensar e agir livremente. A verdadeira democracia pode e deve ser uma democracia mais directa, mais participada e participativa, onde “responsabilidade” é a palavra-chave numa “responsabilização” que terá que passar pela chamada das pessoas a assumirem o seu lugar activo nos processos de decisão. Muito mais do que serem meramente responsáveis por delegar a sua responsabilidade num suposto representante dos seus interesses. São pródigos os exemplos de formas directas e populares de democracia que surgiram no 25 de Abril. Fábricas, comunas agrícolas, centros sociais auto-gestionados e assembleias populares diversas proliferaram um pouco por todo o país, tendo gradualmente vindo a ser eliminadas e substituídas por formas e modelos convencionais de poder e decisão central.
A verdadeira democracia é bem mais do que uma cruzinha num boletim de voto eleitoral. Tem de ser um livro à espera de poemas, de sonhos, de aspirações realmente fraternas, justas e guiadas pela ética social e ecológica. Guiadas pelo direito de todos os cidadãos a terem o acesso aos bens e serviços que possam satisfazer as suas reais necessidades básicas. Bens e serviços que são cada vez mais um luxo e cada vez menos um direito.
Como alguém disse um dia: Face ao pesadelo que a nossa realidade se está a tornar sonhar é a atitude mais realista que podemos ter.
Um dos meus principais sonhos é o de viver numa autêntica democracia, em que todos os homens são realmente iguais, e em que predominam os princípios da igualdade, liberdade e fraternidade. Utopia? Talvez sim … mas por isso mesmo cada vez mais válida e actual. Já o era há um bom par de séculos atrás, e muitos foram os que dedicaram e deram a vida por ela. Não só por nós, mas também por eles, não nos podemos resignar ao poder daqueles que pretendem concretizar a agenda neo-liberal até às suas últimas e mais doentias consequências. Até porque para já estão no bom caminho para o conseguir. Em épocas diferentes, em quase todos os locais da terra, muitas foram as revoltas populares contra os sistemas feudais dominantes. Muitos foram também as revoltas contra o sistema capitalista industrial que lhe sucedeu. Muitas são também aquelas que acontecem hoje em dia ainda que os contornos sejam em geral radicalmente diferentes do passado. Mas dessas revoltas, numa sociedade orientada para a alienação e entretenimento, fala-se ainda muito, muito pouco. Quem sabe o que aconteceu por exemplo na Islândia?
É tempo pois de nos revoltarmos de forma inteligente, criativa e pacífica contra a ordem mundial e nacional neo-liberal e fazermos de todo o nosso estilo de vida a maior prática de desobediência cívica a um sistema, e às entidades que o representam e instituem. Como? Há muitas e variadas respostas mas as mais importantes são aquelas que formos capazes de desvendar nos novos caminhos que individual e colectivamente há a trilhar.
E não esqueçamos: “Uma caminhada de mil passos começa com o primeiro passo”. (1)
E é só isso mesmo que cada um de nós precisa de fazer … dar o primeiro passo.
(1) Lao Tsé
NOTA: Por não concordância com o designado Novo Acordo Ortográfico o autor continua a escrever conforme a dita “norma antiga”

Este mundo da injustiça globalizada




Um texto de José Saramago sobre a globalização

Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.

Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."

Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou.

Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.

Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações.

Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquelas trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos. Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica.

E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é.

É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo.

Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a faGar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica.

E não nos apercebemos, como se para isso não basta os portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros "comissários políticos" do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os certas conhecidas minorias eternamente descontentes...

Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.

Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.

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